terça-feira, 20 de novembro de 2012


Bolo da afrodescendente bipolar

E-mailImprimir
por Angela Dutra de Menezes


Terça-feira, 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Meu carinho e respeito aos primos, amigos e colegas afrodescendentes.  Mas peço licença para lembrar que, se não controlarmos os nossos ímpetos politicamente corretos, corremos o risco de fundar o país da idiotice explícita. Mudernidades lingüísticas não faltam: um anão pobre – ou seja, duplamente sem sorte – só pode ser chamado deprejudicado verticalmente com insuficiência de fundos. Convenhamos, isso permite dupla interpretação e ofende mais o portador de necessidades especiais do que denominá-lo simplesmente de anão pobre. Os exemplos se atropelam: nuvens negras no horizonte? Nem pensar. Ou são nuvens afrodescendentes ou podemos escolher outra cor. Cinza, talvez. Embora diminua a intensidade da Tempestade.
Haja paciência. Na semana passada, perdi a minha ao me deparar, no supermercado, com um pedaço de bolo de chocolate, embrulhado e rotulado: Bolo afro. Lembrei-me de minha mãe, especialista no bolo nega maluca, delícia de chocolate, com calda também de chocolate, que meus irmãos, a tropa que se reunia em minha casa e eu detonávamos em poucas horas. Nunca soube de ninguém que tenha se suicidado ou precisado de apoio psiquiátrico por causa do nega maluca de minha mãe. Detalhe: tenho um primo neurologista e negão. Ou melhor, afrodescendente.  Meu primo se fartou de comer, sem traumas, o bolo nega malucalá de casa. Não por causa do bolo, claro. Mas ele se tornou um adulto bonitão. Se não fosse doutor, com certeza seria um badalado modelo afrodescendente. Mas não se realizaria, eu sei. É inteligente e ambicioso, orgulha-se de sua profissão. Homem bem resolvido: médico e pai de médicos. Igual a todos os seres humanos, de qualquer cor, é respeitado pelo que construiu na vida e não está nem aí se o chamam de afrodescendente ou de negão. Quem pode, podeNão é qualquer um que enfia a mão nos cérebros alheios e resolve aneurismas, tumores e outros perrengues.
Voltando ao que interessa: examinei cuidadosamente o tal do bolo afro e conclui que aquela ignorância era, sem dúvida, meu velho conhecido, o bolo nega maluca.  Irritada, chamei a atendente da padaria.
- Por favor, este é o bolo nega maluca?
- Não, senhora, está escrito aí, é o bolo Afro.
- Ele foi feito na África?
- Não, imagina. Acabou de sair do forno da padaria.
- Ah, então é o bolo nega maluca...
- Ele é afro. Assim nos mandaram chamá-lo aqui no mercado...
- Já sei, é um bolo afrodescendente. Um nega maluca disfarçado.
- É, pode ser, mudam o nome de tudo, não é?
- Você sabe se este bolo tem alguma deficiência psiquiátrica, neurológica ou emocional? Porque ele só é gostoso se for maluco...
A atendente fez cara de espanto, mas não perdeu a pose:
- Não existe bolo maluco.
- Ah, existe, sim. O bolo nega maluca é delicioso.
Sem saber se a desequilibrada era eu, a mocinha escapou pela tangente:
- Melhor chamar o gerente, não?
- Se você quiser...
Em cinco minutos materializou-se à minha frente um cearense - será que posso falar assim ou devo me referir a um cidadão brasileiro da região nordeste do país? - rodopiando em gentilezas:
-Qual é o problema com o bolo, minha senhora?
- O problema é de identidade. Quero saber se o bolo afro é o nega maluca rebatizado.
O gerente me olhou desconfiado e respondeu o óbvio:
- Ele é de chocolate com cobertura de chocolate.
- Isso, eu sei. Mas no rótulo está escrito que leva óleo e água. Então, é o nega maluca.
Na verdade, não estava interessada se o bolo era ou não era o nega maluca. Geralmente, bolo de supermercado não costuma exagerar em qualidade e eu não pretendia comprá-lo. Mas, naquela altura, atônita com tanta idiotice, queria ver até onde chegaria a conversa sobre a dualidade afro/nega. Na minha cabeça a mesma coisa, com uma pequena diferença. O nega soa açucarado. Muito mais comercial do que o afro.  Mas devo ser preconceituosa, não entendo mesmo nada. Diante do impasse, o gerente levou-me ao mestre-padeiro.
- Boa tarde, o senhor pode me esclarecer se o bolo afro é feito com a receita do nega maluca?
Sorridente e coberto de farinha de trigo, o profissional – por sinal, um afrodescendente ma non troppo – encerrou a controvérsia:
- Claro que é. Chocolate em pó, óleo, açúcar, água fervendo. O mesmíssimo bolo, uma delícia. Pode levar sem susto.
- Quer dizer que este bolo continua doido, não mudou nada.
- Fica tranquila. A senhora vai levar o bolo maluco de sempre, mas com apelido chique. Eu já tentei convencer o povo daqui que bolo afro é uma bobagem. Até sugeri o nome que a minha filha universitária inventou: bolo da afrodescendente bipolar. Mas as pessoas reagem, sabe como é...
Em homenagem à sagacidade do mestre padeiro e – só pode ser – à ironia de sua filha, comprei o bolo.
Não é que era mesmo o nega maluca? E, para completar, gostoso demais?

Angela Dutra de Menezes é escritora e jornalista
Share/Save/Bookmark

COM

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

PINTURA, ÓLEO S/TELA, DE UM MODELO VIVO

PAREI UM TEMPO DE PINTAR, DE TRABALHAR NAS ESCULTURAS, DEVIDO A FORTES DORES NA COLUNA DORSAL; ESTOU EM TRATAMENTO, QUASE SEM PODER FAZER NADA. MAS PRETENDO LOGO VOLTAR Á ARTE.